domingo, 10 de agosto de 2008

O homem como ser cultural

Clifford Geertz procura romper, ao mesmo tempo, com a visão de cultura originária do Iluminismo, a concepção evolucionista típica do século XIX e a concepção “psicológica”.Para o Iluminismo, a dimensão cultural era sobreposta a uma natureza boa do homem, como pregava Rousseau no século 18.Para o evolucionismo, a cultura era produto do estágio evolutivo de cada grupo humano, sendo utilizada como critério para a classificação dos humanos em primitivos ou civilizados.Para a concepção “psicológica”, a cultura coletiva era apenas a somatória das mentes e produções individuais.Para Geertz, a cultura é a própria condição de vida de todos os seres humanos. É produto das ações humanas, mas é também processo contínuo pelo qual os homens dão sentido às suas ações. Constitui-se processo singular e privado, mas é também plural e público. É universal, porque todos os humanos a produzem, mas é também local, uma vez que é a dinâmica específica de vida em sociedade que significa o que o ser humano faz. A cultura se dá na mediação dos indivíduos entre si, manipulando padrões de significados que fazem sentido num contexto específico.Como se vê, a cultura deixa de ter um sentido elitista, como no uso preconceituoso de senso comum, para ser a condição de funcionamento da vida humana.
Todos os seres humanos, no cotidiano de suas vidas e buscando orientação para elas, produzem cultura o tempo todo. Não são as orientações biológicas intrínsecas aos seres humanos as responsáveis por suas ações específicas em sociedade, mas os códigos extrínsecos culturalmente construídos e constantemente atualizados. Aquelas fornecem as informações gerais de funcionamento dos seres humanos, como as capacidades biológicas de falar, de locomoção, visão, reações orgânicas, etc., enquanto esses regulam os sentidos e os significados absolutamente variáveis e específicos, como a língua falada, os cheiros agradáveis ou desagradáveis, os sentimentos alegres ou tristes, os conteúdos do pensamento, e assim por diante.
Nessa linha de pensamento, se todos os seres humanos produzem cultura na dinâmica de sua vida em sociedade, há que se considerar as variações de expressão dessa cultura e os diversos signifacados atribuídos às mesmas ações. Atuar com seres humanos sem considerar essa dinâmica cultural pode levar a certos preconceitos, discriminações ou, ainda, a certos pontos de vista absolutos que desconsiderem os reais significados inerentes às práticas humanas.Clifford Geertz critica a concepção chamada por ele de “estratigráfica”, que divide o homem em camadas, tendo o nível biológico como núcleo, superposto hierarquicamente pelos estratos psicológico, social e cultural. Segundo essa visão, o componente biológico humano teria se formado primeiramente, sendo complementado ao longo da evolução pelos componentes psicológico, social e cultural. Tem-se, nessa perspectiva, a cultura como secundária e complementar à formação do cérebro humano, como se fosse originária e conseqüente dele. Geertz refuta essa visão, defendendo a chamada concepção “sintética”, na qual todas as dimensões estão presentes no homem, interagindo como variáveis no seu comportamento.O desenvolvimento cultural na evolução humana foi simultâneo à progressão biológica, um aspecto tendo constantemente influenciado o outro, culminando aproximadamente 100 mil ou 200 mil anos com o homo sapiens, esse ser inteligente que, bem ou mal, conseguiu sobreviver às dificuldadesdo meio e aos outros animais.Reunindo a contribuição de Marcel Mauss – as noções de “fato social total” e de “técnica corporal” – e a contribuição de Clifford Geertz – o conceito semiótico de cultura e sua concepção de homem –, abrimos a possibilidade de ampliar sobremaneira o olhar sobre a Educação Física e sobre o olhar desta em direção ao corpo.
Primeiramente, utilizando as noções de “fato social total” e a “concepção sintética” de homem, pode-se considerar a dimensão cultural como constitutiva da dinâmica humana. Nessa direção, cai por terra a visão tradicional da Educação Física como uma ação apenas sobre o corpo físico, pois não há dimensão física isolada de uma totalidade humana biológica, cultural, social e psíquica.
Podemos também pensar o corpo como dotado de eficácia simbólica, grávido de significados, rico em valores dinâmicos e específicos. Podemos vê-lo a partir do seu significado no contexto sociocultural onde está inserido. Podemos considerar, ao invés de suas semelhanças biológicas, suas diferenças culturais; podemos reconsiderar nossos critérios de análise sobre o corpo, fugindo de padrões preconceituosos que durante muitos anos subjugaram e excluíram pessoas da prática de Educação Física. Podemos substituir padrões inatistas por critérios mais dinâmicos e culturais.A revisão do conceito de cultura tem se mostrado importante para a Educação Física, uma vez que a área trata do homem nas suas manifestações culturais relacionadas ao corpo e ao movimento humanos, historicamente definidas como jogo, esporte, dança, luta e ginástica. Embora fruto de uma tradição que separou a natureza da cultura, a Educação Física lida diretamente com o homem na integração entre esses dois aspectos.
O corpo humano é ao mesmo tempo e indissociavelmente natureza e cultura. Se por um lado existe um patrimônio biológico universal, que faz com que todos os homens sejam membros da mesma espécie, por outro lado, há construções corporais culturais diferentes. O conceito de cultura não exclui a natureza biológica que o homem inegavelmente possui, mas a engloba, procurando dar conta da inserção desse homem em contextos culturais diferentes.
Afirmar que o homem possui construções corporais diferentes em função de contextos culturais diversos é de fácil comprovação. Basta observar o enorme elenco de hábitos corporais, formas de cobrir o corpo, práticas lúdicas, formas de marcar o corpo, tipos de dança, cuidados com o corpo, conceitos de saúde, etc., que os mais variados grupos humanos espalhados pelo mundo apresentam. O mais sutil e relevante, entretanto, é discutir as formas de significação a respeito do corpo e do movimento que o ser humano vai construindo ao longo do tempo e do espaço. Assim, a mesma modalidade esportiva, como o basquetebol, por exemplo, adquire matizes diferentes emfunção da dinâmica cultural específica de cada local. Nesse sentido há várias formas de se praticar o basquetebol, assim como há várias formas culturais de se compreender a dança, o jogo, a ginástica.Essa variabilidade dos fenômenos humanos ligados ao corpo e ao movimento é fundamental quando se pensa na pluralidade de formas de vida que o ser humano moderno apresenta. Enquanto a Educação Física pautou se unicamente pelo referencial das ciências biológicas, ela pôde afirmar categorias absolutas em relação às manifestações corporais humanas. Porque, afinal de contas, em termos biológicos, todos os humanos possuem corpos semelhantes uns aos outros. Quando se considera, entretanto, a dinâmica cultural variada na construção das ações corporais, há de se considerar os processos de significação, ou seja, aquilo que dá sentido a determinadas ações corporais. Em outros termos, o que dá sentido ao movimento humano é o contexto onde ele se realiza. Desvinculado desse contexto, o movimento seria analisado somente como uma expressão biológica do homem, portanto, muito semelhante em qualquer lugar. Assim, o que vai definir se uma ação corporal é digna de trato pedagógico pela Educação Física é a própria consideração e análise desta expressão na dinâmica cultural específica do contexto onde ela se realiza.Como exemplo, podemos citar a corrida de toras que os índios da tribo Canela, do sul do Maranhão, realizam (Geertz, 1989). Homens e mulheres deste grupo realizam uma corrida de revezamento carregando nas costas um tronco de madeira cujo peso pode chegar a 130 kg para os homens e 80 kg para as mulheres. Esta prática, muito significativa entre os índios Canela, seria tratada com outros significados em aulas de Educação Física no Sul e Sudeste do País. Poderia ser analisada, estudada e inclusive praticada em qualquer lugar, mas com significados diferentes daqueles que a própria comunidade Canela impinge a essa prática.
Toras são utilizadas em competições também na Escócia e no Japão. Na Escócia, os homens realizam arremesso de toras muito pesadas e no Japão equipes cavalgam toras grandes e pesadas descendo montanhas abaixo. Você conhece outros exemplos dessas competições que revelam, antes de mais nada, traços e tradições das culturas?
A Educação Física, a partir da revisão do conceito de corpo e considerando a dimensão cultural simbólica defendida por Clifford Geertz, pode ampliar seus horizontes, abandonando a idéia de área que estuda o movimento humano, o corpo físico ou o esporte na sua dimensão física e técnica, para vir a ser uma área que considera o ser humano eminentemente cultural, contínuo construtor de sua cultura relacionada aos aspectos corporais.A abordagem sociocultural na Educação Física tem procurado compreender a imensa e rica tradição da área que durante anos a definiu como ela se apresenta hoje e, ao mesmo tempo, tem procurado entender suas várias manifestações como expressões de contextos específicos. Além disso, a perspectiva cultural faz avançar na Educação Física a consideração de aspectos simbólicos, estimulando estudos e reflexões sobre a estética, a beleza, a subjetividade, a expressividade, a relação com a arte, enfim, o significado. Assim, a Educação Física pode, de fato, ser considerada como a área que estuda e atua sobre a CULTURA CORPORAL DE MOVIMENTO.
Autores: Aldo Antonio de Azevedo ( Doutor em sociologia ), Dulce Suassuna ( Doutora em sociologia) e Jocimar Daolio ( Doutor em Educação Física )

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