sábado, 30 de agosto de 2008

Técnica esportiva: entre a eficiência e a eficácia simbólica


Já vimos que o antropólogo Marcel Mauss, em seu clássico texto sobre as Técnicas Corporais, afirmava que todo gesto corporal constitui-se técnica, uma vez que é dotado de tradição e eficácia, equiparando as técnicas corporais às demais técnicas humanas, como as técnicas de cozimento de alimentos, técnicas de plantio, de adorno, etc. Segundo ele, o ser humano cria, ao longo de sua existência e em função de seu contexto cultural, certos costumes que vão se tornando tradicionais, sendo transmitidos de geração a geração. Esses procedimentos vão se tornando tradicionais justamente porque são dotados de eficácia simbólica, ou seja, respondem a certas demandas da sociedade onde estão adotando significados importantes para o grupo local.

Ora, se todo movimento é técnico, não podemos falar numa técnica considerada melhor, perfeita ou correta, senão num contexto e numa situação devidamente delimitados.

A Educação Física, historicamente, sempre defendeu o ensino de uma técnica para o saque por cima no voleibol, ou de uma técnica para a bandeja no basquetebol, a técnica do salto em altura no atletismo ou da braçada do nado de costas na natação, elegendo alguns movimentos como melhores e desconsiderando outras formas de expressão corporal.

A área de Educação Física, no trato com o esporte, tradicionalmente, sempre considerou a dimensão técnica de maneira exclusivamente instrumental. As obras específicas da área nada mais fazem do que coletar um conjunto de movimentos considerados eficientes e perfeitos para as finalidades de determinada modalidade esportiva e dividi-los em estágios de uma seqüência pedagógica para o seu ensino. Assim, uma única maneira de executar um movimento esportivo torna-se o padrão de correção, e todas as outras formas são tidas como errôneas, incompletas ou variantes menos desejáveis da técnica considerada perfeita. Um gesto técnico passou a ser aquele movimento eficiente, seja em termos biomecânicos, fisiológicos ou esportivos. Fazendo isso, a área de Educação Física e Esportes acabou por privilegiar certos alunos que já sabiam executar os movimentos tidos como eficientes, subjugando aqueles que apresentavam outras formas de expressão, fruto de outras experiências, valores diferentes e interesses específicos.

Falar em eficiência implica pensar no fim, no resultado, no produto final em curto prazo. Falar em eficácia simbólica implica considerar o processo, o meio pelo qual os alunos buscam alcançar seus fins, as diferenças de significados entre grupos diferentes. Por isso estamos enfatizando a eficácia simbólica no ensino dos esportes em vez de priorizar a eficiência.

O gesto esportivo oriundo dos movimentos dos atletas de alto rendimento constitui-se, sem dúvida, em técnica, aliás, das mais eficientes e, plasticamente, das mais belas. Mas não pode ser tomado como a técnica modelar, a ser ensinada imediatamente a todos os alunos. Primeiramente, por se tratar de movimentos dos mais elaborados, demandando grande tempo de treinamento para sua perfeita manifestação; em segundo lugar, porque os alunos, culturalmente situados, podem possuir outros interesses de movimento, que levem a outras demandas em termos de execução.

É justamente essa característica que separa o ser humano dos outros animais. Enquanto esses últimos apenas reproduzem movimentos, podendo até realizá-los com certa eficiência, os humanos, além da busca da perfeição, continuamente atribuem significados culturais às suas ações, variando as formas de execução, transformando-as, criticando-as e executando-as com objetivos os mais variados possíveis.

Não se pretende, nessa discussão, opor os conceitos de eficiência e eficácia simbólica, como se fossem excludentes, mesmo porque o movimento biomecanicamente eficiente é dotado, inegavelmente, de significados culturais. Isso se torna mais efetivo atualmente, devido ao grande poder da mídia esportiva que reverbera mundialmente as atuações de atletas de alto rendimento. O professor não pode estar imune aos apelos da mídia, mas também não deve a ela se render, como se todos os seus alunos devessem obrigatoriamente executar aqueles mesmos movimentos.

Caso você tenha atuado com grupos diferentes, em bairros ou cidades diferentes, já percebeu que o mesmo conteúdo esportivo insere-se de formas próprias em contextos diversos, adquirindo um caminho pedagógico específico que lhe dá sentido naquele contexto. Os interesses do grupo em questão podem ser diferentes, as experiências esportivas serem outras, os significados atribuídos àquela modalidade serem outros, e os objetivos, obviamente, serem variados. Cabe ao professor atento e compromissado fazer a mediação entre o conhecimento esportivo a ser trabalhado com o grupo em questão e seus interesses, experiências e demandas culturalmente determinadas.

Esta reflexão procura avançar na discussão da relevância, do lugar e do tempo do ensino dos gestos técnicos específicos de cada modalidade esportiva.

Utilizando um conceito cultural de técnica corporal, a partir do qual deve ser considerado o significado de todo e qualquer movimento no seio de uma dada sociedade, é possível considerar o ensino dos gestos técnicos não apenas a partir da dimensão da eficiência, mas dentro de contextos culturais específicos, considerando-se também a eficácia simbólica inerente a toda ação humana.

Implicações para o ensino do esporte


Algumas implicações para o ensino do esporte podem ser depreendidas da discussão que tem sido feita até o momento.

A primeira delas é a de que o esporte não é neutro.


Como não é uma entidade abstrata, suspensa no tempo e deslocada no espaço, em si, não é bom nem ruim, positivo ou negativo, útil ou inútil. Ele será aquilo que seus praticantes fizerem dele. Daí a grande importância do educador no ensino do esporte. Como vimos, a prática esportiva não se resume à mera repetição de um conjunto de técnicas, mas no trato constante de valores, valores esses que, consciente ou inconscientemente, serão transmitidos pelo profissional responsável pelo processo.

O mais bem preparado e adaptado é que deve sobreviver – idéia base da teoria evolucionista que está sendo questionada e revisada atualmente.

Foi nessa linha de raciocínio que Valter Bracht (1997) afirmou que não tinha sentido chamar um esporte de educativo, pois, num sentido geral, toda prática esportiva é educativa. Resta saber quais são os valores e atitudes que determinado esporte defende e pratica. Um professor ingênuo poderá achar que estimular nos alunos um comportamento competitivo exacerbado será útil para forjar campeões, desconsiderando que essa prática é exclusiva, injusta e anti-democrática, além de refletir princípios da sociedade capitalista, como o de que o mais capaz deverá suplantar os outros.

Por outro lado, um professor mais crítico e mais atento a esse processo histórico poderá implantar princípios de respeito às diferenças individuais e co-participação em suas aulas, gerando
prazer na prática, solidariedade nas atitudes e reflexão desses princípios entre os participantes.

A prática esportiva tem assumido principalmente os valores do esporte de rendimento ou espetáculo, mesmo quando ocorre em escolas. O fato de haver um esporte na escola não garante uma atitude crítica em relação a aspectos considerados negativos do esporte de rendimento..

Daí a afirmação de vários autores da área de Educação Física atualmente defendendo o esporte DA escola, em vez do esporte NA escola. Enquanto esse último apenas reproduziria de forma a-crítica condutas e princípios do esporte de rendimento, como a competição exacerbada, a especialização precoce, o ganhar a qualquer preço, etc., o esporte DA escola defenderia a construção do esporte possível, com valores discutidos entre os participantes e com condutas condizentes a esses valores. Nessa construção do esporte DA escola, como já afirmamos, o papel do professor é fundamental, a fim de que se posicione claramente em relação a valores que levem a maior participação de alunos, ao reconhecimento e respeito às diferenças entre eles, à oportunidade de apropriação por parte de todos desse maravilhoso patrimônio cultural, que é o esporte.

Outro aspecto a ser considerado quando se pensa no ensino do esporte é a relação com a mídia. Se, por um lado, a mídia tem divulgado o esporte, fazendo dele um grande fenômeno contemporâneo e, de certa forma, levando a demanda de prática esportiva para mais pessoas, por outro lado, a mídia tende a reproduzir valores do esporte de rendimento, transformado em espetáculo para o seu consumo. Esses valores, como vimos, podem não ser aqueles que desejamos em nossos processos educativos. De fato, qualquer pessoa, motivada pelas mensagens esportivas multiplicadas pela mídia, considera-se conhecedora do esporte e busca praticá-lo a partir dos princípios apreendidos por ela.

Mais uma vez enfatizamos a figura do professor no ensino do esporte como mediador entre os valores expressos pelos seus alunos e os objetivos do programa. Influenciados pela mídia, os alunos, não raro, freqüentam as aulas de Educação Física na escola e as escolinhas de esporte ou os clubes sonhando tornarem-se campeões esportivos como aqueles vistos na televisão. Chegam imbuídos daqueles valores, muitas vezes sem apresentarem posicionamento crítico em relação às mensagens da mídia.

O profissional responsável pelo trabalho com esporte deve, não apenas reproduzir as técnicas de movimento das modalidades esportivas, mas constituir-se mediador de um conhecimento amplo e crítico sobre o esporte – incluídos aí aqueles reproduzidos pela mídia.

Mauro Betti (1998) preocupou-se com essa questão procurando compreender a representação sobre esporte que a televisão expressa e como deveria agir o profissional de Educação Física diante disso. Segundo ele, a Educação Física e seus profissionais deveriam contribuir para a formação de um espectador crítico, inteligente e sensível. Assim, a televisão – e podemos estender para outros veículos da mídia – poderia se constituir instrumento pedagógico efetivo da Educação Física no trabalho com esporte.

Como se vê, ensinar esporte não se resume somente na reprodução de gestos técnicos transmitidos de forma neutra, até porque o conhecimento sobre esporte não se resume à sua prática.

Ser conhecedor do esporte implica também saber a sua história, compreender seus determinantes políticos, saber apreciar a beleza estética dos gestos esportivos, compreender que o mesmo esporte pode ser praticado diferentemente devido a especificidades culturais, respeitar as características individuais de cada praticante, entender a mídia esportiva nas suas entrelinhas, enfim, muito mais do que apenas reproduzir gestos.

Essa é a difícil e relevante tarefa dos profissionais que atuam com o esporte.

Autores: Aldo Antonio de Azevedo ( Doutor em sociologia ), Dulce Suassuna ( Doutora em sociologia) e Jocimar Daolio ( Doutor em Educação Física )

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