quinta-feira, 31 de julho de 2008

As mudanças no conceito de corpo – as contribuições da Antropologia

A revisão e ampliação do conceito de corpo a partir da Antropologia Social deve muito aaaa Marcel Mauss (1974). Foi ele o primeiro antropólogo a propiciar a intersecção entre a Antropologia e a Educação Física de modo direto.No seu texto “As técnicas corporais”, Mauss mostra que havia uma ignorância generalizada sobre a noção de corpo, que era costumeiramente caracterizado no item diversos pelos estudos científicos. Afirma o autor: “Sabia muito bem que o caminhar, a natação, por exemplo, todas as espécies de coisas deste tipo, são específicas de sociedades determinadas; que os polinésios não nadam como nós, e que minha geração não nadou como nada a geração atual. Mas que fenômenos sociais eram estes?” (Mauss, 1974, p. 212).E continua o autor:
“Outrora, ensinavam-nos a mergulhar depois de ter nadado. E quando nos ensinavam a mergulhar, ensinavam-nos a fechar os olhos, depois a abri-los na água. Hoje em dia a técnica é inversa. Toda a aprendizagem é começada habituando a criança a permanecer na água com os olhos abertos” (Mauss, 1974, p. 212).
Assim conclui haver uma técnica que foi descoberta na sua geração e que propiciou a reformulação da técnica anterior, possibilitando com o nado de olhos abertos atribuir maior segurança para as crianças, inibindo seus medos, ensinando-lhes a domar os reflexos perigosos
Para Mauss, as técnicas corporais são hábitos próprios de cada sociedade, isto é, de cada cultura. Por essa razão existem diferenças entre o caminhar do brasileiro, do americano e do neozelandês. Essas diferenças podem ser percebidas em relação ao ritmo do caminhar, mais lento, mais pretensioso, mais malandro, ou como fazem as mulheres maori da Nova Zelândia.
“(Não se diga que são primitivos: creio que, em certos aspectos, são superiores aos celtas e aos germânicos). As mulheres indígenas adotam um certo gait (a palavra inglesa é deliciosa): ou seja, um balanceamento destacado e, não obstante, articulado das ancas que nos parece desgracioso, mas que é extremamente admirado pelos maori. As mães adestravam (o autor diz drill) as filhas nesta maneira de fazer o que se chama “onioi”. Ouvi mães dizerem às filhas [traduzo]: tu não fazes o onioi, quando uma menina esquecia de fazer esse balanceamento. Era uma maneira adquirida, e não uma maneira natural de andar. Em suma, talvez não exista maneira natural no adulto”(Mauss, 1974, p. 216).
Contudo, assim como observa o andar dos maori, Mauss observa o andar nas sociedades complexas de sua época e registra uma interessante passagem em um período em que esteve nos EUA e foi hospitalizado com uma enfermidade.Na oportunidade, Mauss observava que o andar das enfermeiras do hospital era o mesmo que o das “mocinhas” do cinema, fato que lhe causou espanto. Mas, ao voltar à França, surpreende-se com o que vê. O andar das francesas era o mesmo das enfermeiras americanas, portanto, o mesmo das mocinhas do cinema. Mauss faz uma constatação. A moda do cinema alterou a técnica cultural do andar, apresentando-se como uma característica coercitiva e, portanto, uniformizadora.Esta idéia sugere que a técnica corporal é sentida pelo autor como um ato de ordem mecânica, física ou físico-química, e é seguido com tal fim.Nesse âmbito, Mauss apresenta sua definição de técnica corporal. Para ele é técnica todo ato tradicional e eficaz, isto é, não há técnica se não há tradição (aprendizado que se baseia em práticas costumeiras).Para Mauss o corpo é o primeiro e o mais natural dos instrumentos do homem.Trata-se do primeiro e mais natural objeto técnico do homem. Portanto, estudando, investigando as técnicas corporais, é possível ampliar o espaço de compreensão do homem, permitindo-se desembocar na compreensão de Geertz (citada por Laraia, 2002) quando afirma que o homem tem uma capacidade imanente de se adaptar a diferentes culturas.
As técnicas corporais (atos humanos) são incorporadas pelos sujeitos como um conjunto de fatores sociais (culturais), biológicos e psicológicos, todos relacionados ao estilo de vida, que acabam por reforçar a noção de habitus. Isto é, fatos que variam com as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, com os prestígios.
É importante frisar dois conceitos de Marcel Mauss que são determinantes para a revisão da noção de corpo e para a Educação Física, de maneira geral.O primeiro deles é o conceito de “fato social total”, cunhado ainda na década de 1920, e que, em síntese, propunha uma totalidade na consideração do ser humano, englobando os aspectos fisiológicos, psicológicos e sociológicos. Essas três dimensões estariam interligadas e expressas em todas as condutas humanas, não sendo possível dissociá-las. Em outras palavras, qualquer ação humana conteria os três aspectos, não podendo ser explicada por um único ponto de vista. Ora, para a Educação Física essa união é até hoje problemática, sendo o homem considerado unicamente ou primordialmente como entidade biológica, sendo as outras dimensões desconsideradas ou secundarizadas.O segundo conceito de Mauss importante para a Educação Física refere-se às “técnicas corporais”, definidas como as maneiras pelas quais os homens, de forma tradicional e específica, utilizam seus corpos. Assim, todo gesto corporal pode ser considerado uma técnica, pois atende aos critérios de tradição e eficácia no interior de uma dada dinâmica cultural.É interessante que Mauss não se refere explicitamente nesse e em outros trabalhos à dimensão simbólica, talvez pelo fato de faltar, ainda nas primeiras décadas do século 20, estudos sobre as questões do símbolo e dos significados nas ações humanas. A Semiologia e a Semiótica eram na época áreas de estudo apenas incipientes. Entretanto, o caráter inovador e relevante na obra de Mauss é justamente essa dimensão simbólica implícita e basilar de toda sua análise.Ora, se se considerar o corpo apenas na sua dimensão biofísica, não há necessidade de diferenciá-lo através do seu uso específico e regional, pois, afinal de contas, o corpo biológico de todos os membros da espécie humana é muito semelhante. Só é possível discutir as especificidades de uso do corpo a partir da consideração de que ele expressa determinados valores de um dado grupo.De fato, quando Mauss utiliza a expressão “eficácia”, ele não o faz acompanhada da expressão “simbólica”, como vários autores da Antropologia o farão nas décadas seguintes, entre eles, Claude Lévi-Strauss. Entretanto, a idéia de “eficácia simbólica” está visivelmente prenunciada em sua obra. E este é outro importante ponto a ser frisado: a dimensão simbólica do ser humano.
Para a Educação Física tradicional, essa dimensão simbólica não interessa, levando a análises que consideram somente a dimensão eficiente dos movimentos, quer em termos biomecânicos, fisiológicos ou, ainda, em termos de rendimento atlético-esportivo.
De fato, é interessante observar na produção da área, pelo menos até a década de 1970, o uso da palavra “técnica”.Considera-se técnico aquele movimento preciso, econômico, correto, quase sempre imitativo dos movimentos de atletas de esporte de alto rendimento. Por oposição, os outros movimentos são tidos como não técnicos, errôneos, espontâneos, naturais, brutos, merecendo, por parte da Educação Física tradicional, intervenção no sentido de corrigi-los, aperfeiçoá-los e padronizá-los.Tendo priorizada tradicionalmente a dimensão da eficiência, a Educação Física distanciou-se dos aspectos estéticos, subjetivos, simbólicos. Considerou o corpo como máquina biológica passível de intervenção técnica e perdeu a possibilidade de vê-lo como produtor e expressão dinâmica de cultura, fato que somente nos últimos anos começa a ser tratado pela área.Assim, vale reforçar juntamente com a contribuição de Marcel Mauss a noção de cultura de Clifford Geertz (1989), que a complementa. A contribuição do antropólogo americano contemporâneo parece fundamental para a rediscussão do corpo e a revisão do papel da Educação Física.
Autores: Aldo Antonio de Azevedo ( Doutor em sociologia ), Dulce Suassuna ( Doutora em sociologia) e Jocimar Daolio ( Doutor em Educação Física )

Um comentário:

zealvro disse...

Gostei muito do texto desenvolvido pelos srs. ele faz uma excelente reflexão entre o "ser" e o "ter".

Parabéns, Doutores!!